Na arte sacra barroca — especialmente no contexto brasileiro — a escolha do material não era apenas uma decisão técnica ou estética, mas também uma escolha carregada de significado, intenção e função prática. Gesso, barro e madeira não só moldavam a aparência final da escultura, como também comunicavam seu uso previsto, sua importância simbólica e até o local onde seria exposta.
Ao longo da história da arte, esses materiais foram empregados de maneiras diversas, adaptando-se às necessidades religiosas, econômicas e culturais de cada época. O barro, por exemplo, era amplamente utilizado em peças votivas ou estudos preparatórios, enquanto o gesso ganhava espaço em ornamentos efêmeros ou elementos decorativos de igrejas. Já a madeira — especialmente o cedro — tornou-se o suporte nobre por excelência das esculturas devocionais do período colonial, pela sua durabilidade e capacidade de ser entalhada com riqueza de detalhes.
Este artigo propõe um mergulho nas características de cada um desses materiais, analisando o que eles revelam sobre a função, o destino e o significado das obras barrocas. Ao compreendermos por que um artista escolheu madeira e não barro, ou por que certas imagens eram moldadas em gesso e não entalhadas, abrimos uma nova perspectiva sobre o pensamento artístico e espiritual de seu tempo.
Barro: expressão da terra e da coletividade
O barro, em sua origem ancestral e profundamente enraizada na terra, é uma das matérias-primas mais acessíveis e simbólicas da história da humanidade. Extraído diretamente do solo, ele carrega consigo a memória da natureza e do tempo, servindo como elo entre o homem, a terra e a coletividade.
Presente em inúmeras culturas e tradições, o barro ocupa um papel central na arte popular, especialmente na cerâmica utilitária e devocional. Seu uso se estende de objetos cotidianos — como potes, panelas e moringas — até representações simbólicas e sagradas que habitam o imaginário coletivo.
A cerâmica de barro conecta o cotidiano ao sagrado, sendo expressa de forma marcante em manifestações como os ex-votos — pequenas esculturas ofertadas em agradecimento por graças alcançadas — e os santos de barro produzidos por artesãos e artesãs do Nordeste brasileiro. A mesma matéria que molda utensílios também dá forma à fé e à esperança.
A cerâmica indígena, por sua vez, revela o barro como expressão ancestral de identidade, cosmologia e tradição. Cada peça é um testemunho vivo da relação entre o povo e a natureza, moldado com saberes transmitidos de geração em geração.
Mais do que um simples material, o barro é um símbolo de resistência cultural, de pertencimento e de criação coletiva — uma arte moldada com as mãos, a alma e a memória do povo.
Madeira: nobreza, durabilidade e devoção
Ao longo da história da arte sacra, a madeira se destacou como um dos materiais mais nobres e expressivos. Presente em esculturas religiosas, altares e móveis litúrgicos, ela carrega não apenas valor estético e funcional, mas também profundo simbolismo espiritual.
A madeira é uma matéria viva: ela respira, envelhece, resiste ao tempo — e, por isso, tornou-se símbolo de força, permanência e renovação. Essa qualidade a tornou ideal para representar o sagrado, servindo como suporte físico e simbólico para a devoção popular e oficial.
No período barroco, a madeira foi amplamente utilizada nas igrejas coloniais brasileiras. Artífices aplicaram técnicas refinadas como o entalhe — esculpindo com precisão os detalhes de roupas, expressões e ornamentos — e a policromia, que dava cor e vida às imagens, unindo pintura e escultura em uma só obra.
As imagens de santos em tamanho real, os retábulos dourados e os confessionários ricamente trabalhados revelam a maestria desses mestres escultores, que, com ferramentas simples e fé profunda, transformaram madeira bruta em arte sacra carregada de emoção, teatralidade e beleza.
Essas obras não apenas adornam os templos, mas também comunicam uma fé encarnada, próxima do povo, resistente como a própria madeira que lhes dá forma.
Gesso: leveza, acessibilidade e reprodução
O gesso, com sua textura suave e maleável, tornou-se um dos materiais mais populares na produção de arte sacra a partir dos séculos XIX e XX. Sua principal característica — a facilidade de moldagem — o tornou ideal para a criação de cópias e moldes, permitindo a reprodução em larga escala de esculturas devocionais e elementos decorativos.
Ao contrário da madeira, mais cara e trabalhosa, o gesso ofereceu uma alternativa leve e acessível, tanto para artistas quanto para o público fiel. Isso possibilitou que imagens de santos, anjos e crucifixos se tornassem presença comum nos lares, capelas e feiras religiosas, democratizando o acesso à arte sacra.
Além das esculturas, o gesso ganhou espaço na arquitetura religiosa, sendo utilizado em ornamentos internos como florões, molduras, colunas e arabescos, conferindo sofisticação com custo reduzido.
Nas feiras populares e celebrações religiosas, como as romarias e festas de padroeiro, os santos de gesso se tornaram símbolos da fé cotidiana. Coloridos, brilhantes e muitas vezes personalizados, esses objetos devocionais unem simplicidade material à profundidade espiritual.
Assim, o gesso não apenas imita a nobreza da madeira ou da pedra, mas traduz a permanência da fé em formas acessíveis, mantendo viva a tradição religiosa em novos contextos e para novos públicos.
Material e função: por que a escolha importa?
Na arte sacra, a escolha do material vai muito além da técnica — ela carrega intenções sociais, espirituais e sensoriais. Cada matéria-prima carrega consigo um significado, um público e um propósito, revelando não apenas a estética da obra, mas também sua função e o contexto em que foi criada.
Historicamente, obras destinadas à elite ou aos grandes centros religiosos utilizavam materiais nobres e duradouros, como madeira entalhada, ouro, mármore e marfim. Esses elementos conferiam imponência, sacralidade e distinção, reforçando a autoridade e a riqueza da Igreja. Já o povo, com acesso limitado a esses materiais, encontrava no barro e no gesso meios acessíveis de expressar sua devoção, criando objetos que uniam simplicidade e profundidade espiritual.
A função da obra também influenciava diretamente a escolha do material. Peças litúrgicas permanentes, como altares e retábulos, exigiam durabilidade e imponência. Já objetos com função didática — como os ex-votos ou imagens populares — priorizavam a leveza, a reprodução e a familiaridade com o cotidiano dos fiéis.
Além disso, o material atua na experiência sensorial da obra. A textura fria da pedra, a maciez da madeira polida, a delicadeza do gesso pintado ou a rusticidade do barro moldado geram sensações táteis e visuais distintas, influenciando a forma como a fé é percebida, sentida e vivida.
Assim, o material não é apenas meio — é mensagem. Ele molda a função da obra, dialoga com seu público e participa ativamente da construção de sua carga simbólica e emocional.
Leitura contemporânea: o que os materiais revelam hoje
Hoje, mais do que nunca, os materiais falam. Para além de sua função estética ou utilitária, eles são pistas valiosas para restauradores, historiadores e pesquisadores que buscam entender a origem, o contexto e o significado das obras de arte sacra. Através da análise dos materiais — sua composição, origem, técnicas de aplicação — é possível datar peças, identificar ateliês ou regiões específicas, além de reconstruir práticas culturais e religiosas de outras épocas.
Paralelamente, cresce a valorização da arte popular e dos materiais antes considerados “simples”, como o barro, o gesso e a madeira crua. Em um cenário contemporâneo que busca dar voz às narrativas periféricas e aos saberes tradicionais, essas matérias-primas ganham novo status, reconhecidas por sua autenticidade, força simbólica e ligação com o fazer coletivo.
Essa revalorização também dialoga com um movimento mais amplo: a busca por sustentabilidade na arte. Em tempos de crise ambiental e reflexão sobre os excessos da produção industrial, muitos artistas contemporâneos têm voltado seus olhares para materiais naturais, recicláveis e de baixo impacto. O uso consciente do barro, da madeira de reaproveitamento e de pigmentos orgânicos resgata práticas ancestrais e propõe uma arte mais conectada com a terra e com os ciclos da vida.
Assim, o material deixa de ser apenas suporte para se tornar narrativa, memória e proposta ética. Ele revela o passado, questiona o presente e inspira caminhos possíveis para o futuro da arte e da espiritualidade.
Conclusão
Ao longo da história da arte sacra, os materiais não foram escolhidos ao acaso — eles carregam significados profundos, dialogam com o tempo, com o espaço e com as pessoas. Do barro humilde ao ouro reluzente, da madeira viva ao gesso moldável, cada matéria-prima contribui de forma única para a mensagem, a função e a experiência sensorial da obra.
Compreender os materiais é ir além da superfície estética. É reconhecer o contexto social, espiritual e cultural em que cada peça foi criada. É entender para quem ela foi feita, por que foi moldada daquela forma e o que ela busca transmitir. Os materiais falam, contam histórias, revelam intenções e sensibilidades.
Por isso, olhar atentamente para a matéria-prima de uma escultura, de um altar ou de um pequeno objeto devocional é um exercício de escuta. É uma forma de se aproximar da alma da obra e de quem a criou.
Fica aqui o convite: ao visitar uma igreja, uma exposição ou uma feira popular, observe com novos olhos. Toque, quando possível. Repare na textura, no brilho, no peso. Pergunte-se: o que esse material está me dizendo? A resposta pode revelar muito mais do que se vê à primeira vista.